Outros olhos espreitavam a massa que se reunia. No alto de uma árvore, na
beira da clareira, estava Ford Prefect, recém-chegado de climas
estrangeiros. Após sua viagem de seis meses, estava magro e saudável, seus
olhos brilhavam, vestia um casaco de pele de rena; sua barba estava tão dura
e seu rosto tão bronzeado como de um cantor de country-rock.
Ele e Arthur Dent vinham observando os golgafrichaneses há quase uma
semana, e Ford decidira que era hora de agitar um pouco as coisas.
A clareira estava cheia agora. Centenas de homens e mulheres andavam por
ali, conversando, comendo frutas, jogando cartas, em geral relaxando. Seus
macacões de viagem estavam a essa altura imundos e até rasgados, mas todos
tinham cabelos impecavelmente penteados. Ford ficou curioso ao notar que
alguns deles tinham recheado o macacão com folhas e ficou pensando se seria
alguma forma de proteção contra o inverno que se aproximava. Ford apertou os
olhos. Não poderiam ter de repente se interessado por botânica.
No meio destas especulações a voz do Capitão elevou-se sobre o
burburinho.
— Muito bem — disse ele —, gostaria de pedir alguma ordem para esta
reunião, se for possível. Todo mundo de acordo? — sorriu cordialmente. — Num
minuto. Quando todos estiverem prontos.
A conversa foi diminuindo gradativamente até a clareira ficar em
silêncio, exceto pelo gaiteiro que parecia estar num mundo particular
selvagem e desabitado. Alguns dos que estavam próximos a ele lhe atiraram
algumas folhas. Se havia algum motivo para isso, escapou à compreensão de
Ford Prefect.
Um pequeno grupo de pessoas tinha se reunido em torno do Capitão e um
deles estava claramente se preparando para falar. Fez isso ficando em pé,
limpando a garganta e então deitando o olhar na distância, como querendo
dizer à multidão que estaria com ela num minuto.
A multidão naturalmente estava atenta e voltou os olhos para ele.
Seguiu-se um momento de silêncio, que Ford julgou ser o exato momento
dramático para fazer sua entrada. O homem virou-se para falar.
Ford pulou da árvore.
— Oi, pessoal — disse.
A multidão girou para o seu lado.
— Ah, meu caro rapaz — disse o Capitão. — Tem fósforos com você? Ou
isqueiro? Algo assim?
— Não — disse Ford, soando como se tivesse sido um pouco esvaziado. Não
era o que tinha preparado. Decidiu que seria melhor ser mais efusivo no
assunto.
— Não, não tenho — prosseguiu —, não tenho fósforos. Em vez disso trago
notícias...
— Que pena — disse o Capitão. — Estamos todos sem, sabe. Há semanas que
não tomo um banho quente.
Ford recusou-se a ser dirigido.
— Trago notícias — disse — de uma descoberta que poderia interessá-los.
— Está na pauta? — perguntou asperamente o homem que Ford tinha
interrompido.
Ford abriu um largo sorriso de cantor de country-rock.
— Não, pêra aí — disse.
— Muito bem, lamento — disse o homem com arrogância —, mas enquanto
consultor de gerência de muitos anos de experiência, devo insistir na
importância de se observar a estrutura do comitê.
Ford olhou para a multidão.
— Ele está louco, sabem — disse. — Este é um planeta pré-histórico.
— Dirija-se à mesa — ralhou o consultor de gerência.
— Não tem mesa nenhuma — explicou Ford —, só uma pedra.
O consultor de gerência decidiu que o que a situação agora requeria era
impaciência.
— Ora, chame de mesa — disse impacientemente.
— Por que não chamar de pedra? — perguntou Ford.
— Você obviamente não tem concepção — disse o consultor de gerência, sem
abandonar a impaciência em favor da velha e boa soberba — dos modernos
métodos de negócios.
— E você não tem concepção do lugar em que está — disse Ford.
Uma garota de voz estridente levantou-se de um salto e usou-a.
— Calem-se, vocês dois — disse ela —, quero enviar uma moção ao plenário.
— Você quer enviar uma moção à clareira — disse um cabeleireiro, dando
uma risadinha.
— Ordem, ordem! — gritou o consultor de gerência.
— Muito bem — disse Ford —, vamos ver como estão se saindo. — Agachou-se
no chão para ver quanto tempo agüentava manter a calma.
O Capitão fez uma espécie de ruído conciliatório.
— Gostaria de pedir ordem — disse amavelmente. — A cinco centésima
septuagésima terceira reunião do comitê de colonização de Flintevudlevix...
Dez segundos, pensou Ford, e ergueu-se de um pulo.
— Isso é frívolo — exclamou. — Quinhentas e setenta e três reuniões de
comitê e vocês ainda não descobriram o fogo!
— Se você se desse o trabalho — disse a garota da voz estridente — de
consultar a folha de pauta da reunião...
— A pedra de pauta — gorjeou o cabeleireiro alegremente.
— Obrigado, eu coloquei essa questão — murmurou Ford.
— ... você... vai... ver... — continuou a garota com firmeza — que
teremos um relatório do Subcomitê de Desenvolvimento do Fogo dos
cabeleireiros esta tarde.
— Oh... ah — disse o cabeleireiros com um olhar encabulado, que é
reconhecido em toda a Galáxia como significando: "Ahn, será que dava pra ser
pra terça-feira?".
— Muito bem — disse Ford, cercando-o. — O que você fez? O que você vai
fazer? Quais são suas idéias a respeito do desenvolvimento do fogo?
Bom, não sei — disse o cabeleireiro —, só me deram uns pauzinhos...
— E então? O que você fez com eles?
Nervoso, o cabeleireiro procurou nos bolsos do seu macacão e entregou a
Ford o fruto de seu trabalho. Ford os levantou para que todos vissem.
— Pinças para cachear cabelos — disse. A multidão aplaudiu.
— Não importa — disse Ford. — Roma não se fez num dia.
A multidão não tinha a mais remota idéia do que ele estava dizendo, mas
mesmo assim adoraram. E aplaudiram.
— Bem, você está sendo totalmente ingênuo, obviamente — disse a garota. —
Quando você tiver trabalhado com marketing tanto quanto eu vai saber que
antes que um novo produto possa ser desenvolvido ele tem que ser devidamente
pesquisado. Precisamos descobrir o que as pessoas esperam do fogo, como se
relacionam com ele, que tipo de imagem ele tem para elas.
A multidão estava tensa. Esperavam algo de sensacional de Ford.
— Enfia no nariz — disse ele.
— O que é precisamente o tipo de coisa que precisamos saber — insistiu a
garota. — As pessoas querem fogo que possa ser introduzido nasalmente?
— Vocês querem? — perguntou Ford à massa.
— Queremos! — gritaram alguns.
— Não! — gritaram outros alegremente. Não sabiam, só achavam ótimo.
— E a roda? — disse o Capitão. — Como vai essa roda? Parece um projeto
terrivelmente interessante.
— Ah — disse a garota de marketing —, estamos encontrando alguma
dificuldade aí.
— Dificuldade? — exclamou Ford. — Dificuldade? Como assim, dificuldade? É
a máquina mais simples de todo o Universo!
A garota de marketing olhou para ele com mau humor.
— Muito bem, Sabe-Tudo — disse. — Já que você é tão esperto, então diga
de que cor ela deve ser.
A massa delirou. Um ponto para o time da casa, pensaram. Ford sacudiu os
ombros e sentou-se de novo,
— Zarquon Todo-Poderoso — disse —, nenhum de vocês fez nada?
Como que em resposta a sua pergunta houve um repentino clamor na entrada
da clareira. A multidão não acreditava na quantidade de diversão que estava
tendo aquela tarde: uma tropa de cerca de uma dúzia de homens vestindo os
restos de seus uniformes do terceiro regimento de Golgafrincham entrou
marchando. Estavam bronzeados, saudáveis e totalmente exaustos e enlameados.
Pararam a um "alto" e perfilaram-se atentos. Um deles desfaleceu e não se
moveu mais.
— Capitão! — gritou Número Dois, que era o líder. — Permissão para
informe, senhor!
— Tá, tudo bem, Número Dois, sejam bem-vindos e tudo o mais. Acharam
alguma fonte de água quente? — disse o Capitão, desesperançado.
— Não, senhor!
— Foi o que pensei.
Número Dois atravessou a multidão é apresentou armas diante da banheira.
— Descobrimos um outro continente!
— Quando foi isso?
— Fica além do mar... — disse Número Dois, estreitando os olhos
expressivamente — a leste!
— Ah.
Número Dois voltou o rosto para a multidão. Ergueu sua arma acima da
cabeça. Essa vai ser ótima, pensou a massa.
— Declaramos guerra!
Aplausos desenfreados explodiram em todos os cantos da clareira. Isto
superava todas as expectativas.
— Espere um minuto — disse Ford Prefect —, espere um minuto!
Levantou-se e pediu silêncio. Após um instante, conseguiu, ou pelo menos
conseguiu o melhor silêncio que podia sob as circunstâncias: as
circunstâncias eram que o tocador de gaita de foles estava espontaneamente
compondo um hino nacional.
— Tem que ter esse gaiteiro? — indagou Ford.
— Ah, sim — disse o Capitão —, nós lhe demos uma subvenção.
Ford considerou a idéia de colocar isso em debate mas rapidamente decidiu
que a loucura prevaleceria. Em vez disso, atirou uma pedra no gaiteiro e
virou-se para Número Dois.
— Guerra? — disse.
— É! — Número Dois olhava desdenhosamente para Ford.
— Contra o continente vizinho?
— É! Guerra total! A guerra que vai acabar com todas as guerras!
— Mas ainda nem tem ninguém morando lá!
Ah, interessante, pensou a multidão, um ponto importante.
O olhar de Número Dois pairava sem se perturbar. A este respeito seus
olhos eram como um par de pernilongos que pairam propositalmente cinco
centímetros diante do seu nariz e se recusam a se desviar por golpes com as
mãos, tapas de mata-moscas ou jornais enrolados.
— Eu sei disso — disse —, mas um dia vai ter! Por isso deixamos um
ultimato com um espaço em branco para eles preencherem.
— O quê?
— E explodimos algumas instalações militares. O capitão debruçou em sua
banheira.
— Instalações" militares, Número Dois? — disse. Os olhos tremularam por
um momento.
— Sim, senhor, instalações militares em potencial. Tudo bem... árvores.
Passou o momento de incerteza, seus olhos adejavam para a audiência.
— E também — vociferou — interrogamos uma gazela!
Posicionou elegantemente sua Matazap debaixo do braço e marchou através
do pandemônio que irrompera pela multidão em êxtase. O máximo que conseguiu
caminhar foram alguns passos antes de ser levantado e carregado para uma
volta de honra ao redor da clareira.
Ford sentou-se e começou a bater negligentemente duas pedrinhas, uma
contra a outra.
— Então, o que mais que vocês fizeram? — indagou, quando as celebrações
tinham acabado.
— Começamos uma cultura — disse a moça de marketing.
— Ah, é? — disse Ford.
— É. Um dos nossos produtores de cinema já está fazendo um fascinante
documentário sobre os homens das cavernas nativos da área.
— Não são homens das cavernas.
— Parecem homens das cavernas.
— Eles vivem em cavernas?
— Bom...
— Vivem em cabanas.
— Talvez estejam redecorando suas cavernas — gritou um gaiato na
multidão.
Ford virou-se para ele, irritado.
— Muito engraçado — disse —, mas vocês notaram que eles estão morrendo?
Em sua viagem de volta, Ford e Arthur tinham deparado com duas aldeias
abandonadas e pelos corpos de vários nativos na floresta, para onde tinham
se arrastado para morrer. Os que ainda viviam pareciam doentes e apáticos,
como se sofressem de uma doença do espírito e não do corpo. Andavam
indolentemente e com uma tristeza infinita. Seu futuro lhes tinha sido
tirado.
— Morrendo! — repetiu Ford. — Sabe o que isso significa?
— Ahn... que não devemos vender apólices de seguro para eles? — gritou o
gaiato outra vez.
Ford ignorou-o e apelou para toda a multidão.
— Será que dá para vocês tentarem entender — disse
— que foi só depois da gente chegar aqui que eles começaram a morrer?
— Na verdade isso calha magnificamente no filme — disse a garota de
marketing —, dá aquele toque pungente que é a marca característica de todo
documentário realmente bom. O produtor é muito empenhado.
— Tem que ser — murmurou Ford.
— Eu soube — disse a garota voltando-se para o Capitão que começava a
discordar com a cabeça — que ele quer fazer um sobre o senhor em seguida,
Capitão.
— Ah, verdade? — disse ele animado. — Isso é maravilhoso.
— Ele tem um ângulo muito interessante sobre esse assunto, sabe, o fardo
da responsabilidade, a solidão do comando...
O Capitão festejou por uns instantes.
— Bom, eu não acentuaria demais esse ângulo, sabe — disse finalmente. — A
gente nunca está sozinho com um pato de borracha.
Ergueu o pato para o alto para a multidão apreciá-lo.
Por todo esse tempo o consultor de gerência tinha ficado sentado num
silêncio de pedra, com as pontas dos dedos apertadas contra as têmporas para
indicar que estava esperando e que esperaria o dia todo se fosse necessário.
A esse ponto ele resolveu que não ia esperar o dia todo nada, ia só
fingir que a última meia hora não tinha acontecido.
Levantou-se.
— Se — disse sucintamente — pudéssemos por um momento passar para a
questão da política fiscal...
— Política fiscal! — gritou Ford Prefect. — Política fiscal!
O consultor de gerência dirigiu-lhe um olhar que apenas uma pirambóia
poderia imitar.
— Política fiscal... — repetiu — foi o que eu disse.
— Como vocês podem ter dinheiro — perguntou Ford — se nenhum de vocês
produz efetivamente alguma coisa? Não nasce em árvores, sabia?
— Se você me permitisse continuar...
Ford consentiu com um sinal de cabeça, desanimado.
— Obrigado. Desde que decidimos há algumas semanas adotar a folha como
moeda legal, todos nos tornamos, naturalmente, imensamente ricos.
Ford assistia incrédulo à multidão, que murmurava apreciativamente e
passava os dedos pelos montes de folhas que tinham entuchado em seus
macacões.
— Mas também — prosseguiu o consultor de gerência — deparamos com um
pequeno problema de inflação decorrente do alto nível de disponibilidade de
folhas, o que significa, eu acho, que o valor atual de câmbio corresponderia
a algo como três florestas caducas para a compra de um amendoim da nave.
Murmúrios alarmados vieram da multidão. O consultor de gerência os
aplacou.
— Então, com o objetivo de prevenir este problema — continuou -- e
efetivamente revalorizar a folha, estamos prontos a lançar uma campanha
massiva de desfolhação e... ahn, queima de toda a floresta. Acredito que
todos concordarão que é um passo sensato diante das circunstâncias. A massa
parecia um pouco insegura quanto a isso por alguns segundos até que alguém
lembrou o quanto isso elevaria o valor das folhas em seus bolsos, o que os
fez dar pulos de alegria e ovacionar de pé o consultor de gerência. Os
contadores entre eles previam um outono muito lucrativo.
— Vocês estão todos loucos — explicou Ford.
— Estão absolutamente apalermados — sugeriu.
— Vocês são um bando de otários delirantes — opinou.
O grosso das opiniões começou a voltar-se contra ele. O que tinha
começado como excelente diversão tinha agora, na visão da massa, deteriorado
em mero abuso, e já que este abuso era principalmente dirigido contra eles,
eles ficaram fartos.
Sentindo essa mudança no ar, a garota de marketing voltou-se para ele.
— Talvez venha ao caso — disse ela — perguntar o que você andou fazendo
todos estes meses então. Você e aquele outro intruso estão desaparecidos
desde o dia em que chegamos.
— Estávamos viajando — disse Ford. — Fomos tentar descobrir alguma coisa
sobre este planeta.
— Oh — disse a garota maliciosamente —, não me parece muito produtivo.
— Não? Pois bem, eu tenho notícias para você, meu amor. Nós descobrimos o
futuro deste planeta.
Ford esperou que esta afirmação produzisse seu efeito. Não produziu
nenhum. Não sabiam do que ele estava falando.
Continuou.
— Não importa um par de fígados fétidos de cães o que vocês resolverem
fazer de agora em diante. Queimar as florestas ou o que for, não vai fazer
nem um arranhão de diferença. Sua história futura já aconteceu. Vocês têm
dois milhões de anos e pronto. Ao final desse tempo sua raça vai estar
morta, passada e já vai tarde. Lembrem-se disso, dois milhões de anos!
A multidão murmurava entre si, incomodada. Pessoas ricas como eles tinham
acabado de se tornar não deveriam ser obrigadas a ficar escutando tipo de
pagação. Talvez se eles dessem uma ou duas folhas para o sujeito ele fosse
embora.
Não precisaram se incomodar. Ford já estava caminhando para fora da
clareira, parando apenas para sacudir a cabeça para Número Dois, que já
estava descarregando sua Matazap em algumas árvores das proximidades.
Voltou-se uma vez.
— Dois milhões de anos! — disse, e deu uma risada.
— Bom — disse o Capitão com um sorriso reconfortante —, ainda há tempo
para mais alguns banhos. Alguém podia me passar a esponja? Acabei de
derrubar aqui do lado.